domingo, 28 de fevereiro de 2010

SOCIEDADE DE AMIGOS: POR UM DEVIR POÉTICO...

DEVIR, POESIA E AMORES... AMORAS...


EU, DEVIR MAR...

                                                                               LINCOLN ALMEIDA



O mar da minha terra, me lembro, era feito de cristais líquidos de pura safira que batia macio, vadio, irado no peito.
O sopro de vida das marés o agitava salgado na pele ainda alva e tenra...
A princípio não tive olhos pra vê-lo - a infância pulsante seduzia mais:
não vi que estava comigo nas veias,
até que a espuma, brumas e areias
atravessaram de vez o espírito,
se uniram aos cordões do meu sangue,
falaram pela minha boca,
me tornando, por fim, mar também...


HÁ UM PASSO DO ABISMO

                                                                               JAMIRA BARBOSA



... O vejo tão perto, me aproximo.
Tento tocá-lo, não dá;
me aproximo mais e mais...
Você... um imenso abismo.

Não consigo ultrapassá-lo,
você foge. Não me ajuda
a vencer, vencer o abismo,
o abismo que existe entre eu e você.

Olho seus olhos e não vejo brilho...
Sinto sua respiração sem nenhuma emoção...
Sinto seu corpo frio, sem calor...
Sinto você perto, mas tão longe...
Tão longe e tão perto...
Minhas emoções já não posso colocá-las em palavras.
Não mais...

Estou me perdendo
na escuridão da luz dos seus olhos
no frágil aperto dos seus braços
no calor do seu beijo frio
no seu doce amor renegado...

Me perdi
no seu pequeno imenso abismo
na sua indiferença
no seu gelado amor...

Estou a um passo do abismo.
Estou... a um passo de você.


Herança

                                                                                   Lia da Silva Mocho



A cara do pai
O andar do tio,
Um irmão que sumiu no mundo...
O anel de noivado da prima
Que morreu solteira...

No quarto dos fundos
O choro das viúvas
Embala o sono dos filhos
Não nascidos.
Quarto de despejo,
De sonhos e lembranças
Bordados em lençóis de linho
Que o tempo se encarrega de desbotar.

Retalhos de vida
No silêncio varridos
Para baixo - bem fundo- da pele.



             Álamo
 Lia da Silva Mocho

Sagrada forma
Vegetal pintura
Bela palavra sonora verde
Ao vento baila!

Doce álamo, ensina-me!
Os frutos maduros repartir
Os sonhos pequeninos cultivar,
As folhas,já cansadas, deixar ir
E em tua leve sombra descansar...



SONETO SOBRE O DIA DE HOJE:

                                                                    Alexandre Lacerda Alves


O dia de hoje não possui memórias,
Como se ontem não tivesse existido,
Nem deixado registro ou histórias,
Como sonho estéril e descabido.

Que dia é este tão misterioso afinal?
Qual seu tom, sua rota ou vibração;
Desprezado como fruta podre no quintal,
Ou baile sem festa, música ou animação?

Como co-existir hoje sem ontem,
Amanhã sem o fruto de agora:
Quimera inútil que o demônio adora;

Porque se de fato é o que se diz,
O dia de hoje é aviltada utopia...
... pois é hoje o dia de amar e ser feliz.






                                                                         

PEQUENO DICIONÁRIO ESQUIZOANÁLITICO

           Dicionário - arte de filosofar, simplificando e uma arte- arteira de simplificar, delirando...
                                                                           jorge bichuetti



Ritornelo - Refrão, estribilho... O vivido, repetindo-se; um jeito de andar na vida sempre atualizado como uma rima persistente: Eco remetente... Um fantasma sempre em apoteótica ou oculta aparição.

Bifurcação - Devir- Fênix . Esquina, encruzilhada... Enxerto... Broto... Florescer e frutificar. Fugir do tronco, senzala...

Atravessamento - Uma pedra no meio do caminho. O nó na garganta. O lobisomen na escuridão. Um vampiro emergindo; e nuvens pretas no céu dos sonhos. ...

Repetição - O ato de ser, estar mesmisse. Agir igual... É a reprise... Sessão- da- tarde. Homem robô- coração programado... Alma- múmia...



Agenciamento - Ato de catalizar... Fazer emergir... Provocar... Um gerador de... Propiciar acontecimentos...

Não- dito - O segredo, o oculto... o dito pelas estrelas, pelo silêncio de um gesto ou pelas sílabas conectadas na poética dos olhares. O coração batendo forte de vergonha, medo, de pudor e timidez.

Registro- controle - É um policial: pessoa, palavra, instituição... Lei, repressão... Tropa- de- choque, fora e dentro do homem... torrente, armadura...

Produção - Produzir: tecer vida, fiar novidades; esculpir frutos e flores, estrelas e palavras, coisas e atos que materializem o desejo da vida de se produzir vida, mais vida e vida- mais.

Máquina desejante - Ação de produzir- se, realizando- se o desejo vivo, tornando aprazível as maquinações do existir.

Édipo - Amor triangular, competição; existir no espectro do universo familiar; retorno periódico aos mitos e ritos oriundos do teatro pai- mãe, senzala doméstica.

Diferença - O ser do devir, o existir para além das réplicas e cópias. O amanhecer de um acontecimento...

Transversalidade - Conviver coletivamente livre, sem necessidade de uniformizar. Ser compondo a vida e a estrada com Es e Entres...

Corpo sem orgãos - Corpo- caos , finito em sua infinitude e infinito na finitude do momento... Corpo não geográfico, a- temporal - Vida - velocidade e fluxo. Vida - luz.
Devir - O novo, o inusitado... O criar-se como novidade... Ser, hoje o amanhã e o amanhã, o depois...

Ressonância - Ondas do lago em que: um peixe saltou, um pássaro bicou- o, ou se viu tocado por uma pedra lançada, uma folha caida ou um asteróide mergulhando.

Complexo - emaranhado, trama e drama do passado não resolvido e não desprezado, permanecendo como referência da vida estropiada no aqui e agora e o bloqueio de construção de um destino - amanhã.

Singularidade  - ser único, o diferente... Não- ser mera cópia, não ser um exemplar do homem- série...

Experimento - Ato de descobrir e se descobrir através da pele... Viver, laboratorialmente... Fazer da arte de viver uma enciclopédia escrita pelas descobertas, descobertas gestadas pela coragem de investigar / experenciar.



Buraco negro - Canto da Sereia, o redemoinho... Poço sem fundo... Cela forte...



Utopia ativa - O inédito viável; o amanhã. Sonho - desejado e luta sonhada. Travessia. Revolução: o MST, a Luta Antimanicomial, las Madres, o ABC, os Sem Teto... Eu - você: nós, nossos sonhos.



POESIAS: ENTRE O SOL E AS CINZAS DE UMA RECORDAÇÃO

FIM DE TARDE
JORGE BICHUETTI


O crepúsculo ajunta os sonhos, cores
do espírito sensível e um disfarce
dionisíaco remonta a mesa, ardores
emergindo no afã de alegrar-se...

Um copo de cerveja.... Ri-se, amores...
Em quedas na ilusão aí se ressarci
o segredo. Nascendo bastidores
do jeitinho inocente da catarse.

Fim de tarde. festança de rotina...
Esquecer... o estafante, a dor-trabalho
desconhecer a ruína, a própria sina...

Desbravar na existência, novo atalho;
fugir, sim, do temor que desatina,
mas, enfim, refrescar-me ébrio de orvalho.

DEVIR ANIMAL

                                                                               JORGE BICHUETTI



O rosnado do gato incendiou no telhado
a magia do luar. Efeito efervescente
do amor, este ressoar de um eco demente,
faz o homem lembrar de querer-se amado...

Guardas no coração, ó, um bichano aninhado
e solene ele arde e espera indolente;
soletra uma canção num discurso miado.
Não chora, nem contém-se, ali, cioso sente...

O homem racional nega-se apetitoso,
sendo a velhice do corpo de um pobre moço,
não permite ser pura sensualidade.

Quem me dera amar, num devir animal,
tecendo no roçar: encontro germinal;
e no abrasar-me ser pleno de liberdade.

SE VIVER...

                                                                           jorge bichuetti



Se viver fosse tão somente amargar
o indigesto fel de uma cinzenta rotina;
talvez, as ondas se ocultassem no mar
e a praia tornar-se-ia apenas triste ruína.

Existir plenamente exige ter a sina
de num devir pardal perambular,
buscando numa estrela irradiante viajar...
O chão primaveril, então, canta e alucina

a vida atualizada entre a Utopia Ativa
e a miragem de um deus guerreando, alado,
no porvir que o hoje já encantado anuncia...

Se viver é sonhar... Sonhe... Sonhe, acordado;
pois se o infinito mora envolto, em qualquer dia,
a dor jaz na alma d’um arco-íris naufragado.


ALUADO

                                                                                jorge bichuetti

          
                                                              Cachoeira. Água, ventania...
A vida corre contorcida, travestida de sonho.
Riacho. Verde campo florido...
A vida torce galopante pelo instante do êxtase.

Flores. Pardais no varal. Sentinela...

Amores-viscerais
No corpo, uma emoção:
como é bom ter a perversão
de engolir a terra,
pensando a lua saborear...


AMOR DE ÍNDIO
                 jorge bichuetti

Tens o corpo tecido e armado pelas matas.
Onde és ave, deus... Grão, árvore, serpente;
reinas irradiante e se o mal desatas,
desatas por amor, o amor teu, fogo ardente.

Tens fagulhas de sol incrustadas na alma,
incendiando paixão num olhar de ternura
e acalmando o fulgor desta louca loucura,
és da vida tão-só sonho, prazer e calma.

Amar-te, plenamente, e voar na doçura
do teu abraço. Só amar-te, docemente:
eis dos astros a voz, voz de um coração.

Amar-te, ternamente, e não temer a altura
do vôo sideral, céu estrelado, aguardente;
florescer do amor, do amor corpo-explosão...


RETALHOS DE RECORDAÇÕES

                                                                        jorge bichuetti

                                                          
Fotos. Bilhetes. Uma carta... Uma dúzia de canções.
Uma rosa seca no meio de uma vida.

... Mas se o telefone tocar e eu ouvir
tua voz, teu canto;
hei de ver ressurgir
a fagulha do encanto.

Nunca. Jamais te esqueci.
Nunca quis estar longe de ti.
A vida tramou, jogou falso, trapaceou...

Somente, assim, aceito não te ver;
já que reinas
na ilha onde exilado te espero.
Embora, apenas, reste-me
esta e aquela, ou ainda outra,
apenas algumas lembranças
pra me alegrar.

E, então, lembrando adormeço...





 
                                                    Sonhos
                                   Há um amanhã, adormecido
                                   que sonha-se realidade...
                                    Há um possível, escondido
                                    na gaiola, aprisionado...
                                    As cinzas do hoje ocultam
                                    as brasa do alvorecer...
                                    O manhã mora ali,
                                    mora na rua e nas nuvens
                                    mora no delíro de um mago
                                    mora no bailado do guerreiro
                                    mora ali, nas varandas do sonho
                                    entre o luar e o despertar...
                                    entre as estrelas... do mais amar..
                                               jorge bichuetti

A POTÊNCIA DA MÚSICA

CAETANEAR: UM REPERTÓRIO DE VIDA
                                                                           jorge bichuetti



De Santo? Amaro... Amá- lo... Amparo... da purificação.
Puro ar... figa... ação...
Caetano: veludo, mel mel - osso... vitalizante...
Caetano, cantor e poeta, na terapia?
Ter ar pia: pia de batismo, ave pia...
Tear pira: criar loucura, sonho, imaginação... Atuar... Virtual.
Nasci caetaneando o que há de bom.
Assim, ele se apresentou, emergiu no palco da minha modesta vida, na lida da minha arte- profissão.
Poeta? Ele é... Eu? Companheiro- ser- irmão e ser e mão...
Nesta minha travessia de terapeuta, sempre tive a certeza de que o meu ofício trazia consigo a arte e o feitiço de ter por labor o homem, seus limites, seus sonhos, sua alma.
... Mas nunca pude exercer meu ofício sem o querer, rompendo os podres poderes, e mesmo na clínica caetanear...
São muitas as lições que roubei do repertório de Caetano Veloso, entre caracóis e unhas negras, uma força estranha que faz da dor um cantar.
Aqui, abordarei um dos aspectos, um apenas...
O repertório de vida...
Costumeiramente, temos uma pauta de conduta: rígida, previsível e restrita.
Caetano é a saúde do flexível, do inesperado, da amplidão... finita infinitude.
Velô - cidade - cosmo, bairro e região...
É a multiplicidade ... O Singular...
Provocação. Silêncio. Cantiga de ninar e um toque de acordar.
Serenata: Lua e estrelas...
No escuro, devir luz, provocante amanhecer.
Não sei se o papel o comporta; ele é o luxo, o lixo; o nexo e desconexo; é vida... vida- inovação.
Somos geralmente um script. Um programa: pura repetição... Somos cópias...
Expectativa e medo, vivemos aquém... Não ousamos experimentar o doce e o doce e o bárbaro dos sonhos que emergem do desejo; deixamos nossos desejos à deriva na contramão.
Caetanear... Caetanear: é saúde- vida; loucura- produção.
Não o conheço. Mas não nego: trago comigo uma encantada... ternura
Se falasse por mim... Ah! Não teria a necessária isenção. Texto- científico? Arte? Ou pura admiração.
As rimas tão nordestinas já revelam minha confusão.
...Todavia, num stacatto, deixo o amor(?), e tentarei contar casos, onde a música deste moço- belo me permitiu agir - com vida, sensibilidade e arte- gentil...

Stacatto. Repertório: o conjunto de condutas com as quais efetivamos vínculos, respondendo as demandas diárias da vida e criamos, conscientes e inconscientes, as tramas do nosso próprio destino.
Ser, estar... Responder, intervir...
Ver- se, assumir- se...
Criar... Reinventar- se...
O mundo é o mundo. Gira e cobra; rodopia e pressiona... Nele, vivemos...
Muitas dores, conflitos; doenças e estar mal nascem da pobreza de nossa pauta de conduta.
Queremos ser... o mesmo... a mesmisse...
Queremos agradar, e assim, renunciamos os apitos do próprio coração.
Seguimos robotizados. Quadriculados... Submissos e servis... Excluímos do nosso mundo a ousadia de querer, sonhar e amar...
Súditos, sofremos. Carcereiros de nós mesmos.
Acorrentados pela ilusão de viver por agradar.
Infelizes, adoecemos e na nossa doença descobrimos a nossa vida amesquinhada, por não ousar... não assumir... os fluxos da nossa alma, e de tanto agradar, desgraçamos uma existência perdendo a graça e a luz de viver por desejar...

Caetano. Caetano. Axé, meu moço- Bahia, cantar povo e poesia... Uma prece ensimesmada, suave e terna, rebelde, que provoca, afeta, insita o desejo de se aventurar...

Tenho, na clínica, Caetano... Na vida, tento caetanear.
Músicas. Temas. Poesias: devoluções que provocam, afetam, insitam o desejo de na vida estar.
Estar, presente. Vivo. Viver e experimentar...

Estas reflexões retratam o visto e o vivido quando diante da vida, deixei Caetano encantar...

Texto feito trova- verso, filosofia a granel, pode baratear o rico material que nasceu de um moço- belo, de uma vida- tropicália, sol e luar de uma terra que sabe superar pesadelos por trazer consigo num arquétipo exótico a arte de saber sonhar.

Chega de prosa, mineira ou nordestina, quero devir terapeuta e alguns casos contar:
Caso 1. O usuário mostrava-se melancólico. Porém, longe da vida. Escravo da rotina. Era um perfeito robô dos padrões hegemônicos.
Obsessivo, reclamava da vida. Todavia, jamais ousava.
Para mim, estava difícil clarificar a sua condição: escravo da ordem.
Um dia no meandro da rede de transferências e transversalidades, ele me pergunta:
- E você?
Respondo, cantarolando:
 " Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento... Eu vou..."
Stop. Silêncio: no ar, somente o hino de liberdade que provocativamente eu continuei assobiando.
Ele riu. Riso gordo com sabor de pão- de- queijo e acarajé.
Talvez, tenha sido o seu dia D. Uma canção disparando provocações e nos espelhando, nós e o cotidiano.

Caso 2. Após uma tragédia. Um acidente de moto. Machucado. Atento.
Escuto o desespero de quem faceou- se com a morte. Vejo medo.
Conversamos. Escuto.
Depois, de muito escutar, num lamento, ele diz:
E agora, com que forças irei recomeçar?
Seguro sua mão e o meu coração como se orasse, canta:
-  "Eu vi um menino correndo,
... Eu vi o tempo...
... Porisso uma força
... Estranha no ar
... Porisso esta voz tamanha."

Caso 3. Um homem se envergonha da sua própria opção sexual. Várias sessões . Do édipo ao machismo, o mundo em revista.
Um dia, ele chora e eu, ternamente, canto “existirmos a que será que se destina / pois quanto tu me deste a rosa pequenina “...
O erótico se divinizou e pode se devir, tranquilamente, apenas mais um Jesus a procura de alguém que pudesse ser tanto que passaria a ser referido como o ''amado''

Casos... N casos.
Caetano também é n vidas.
Vida - liberdade, um poeta.
Simplesmente, o Caetano que ousou nos chamar para a guerra e intensificar a vida, afugentando os podres poderes.
... Ele é terapêutico, pois é o próprio devir numa travessura apoteótica.
À ele, nossa gratidão.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

BONS ENCONTROS: O TEATRO DO OPRIMIDO E O OUTRO MUNDO POSSÍVEL

 DO TEATRO DO OPRIMIDO ÀS LUTAS INSURGENTES


   Vivemos tempos cinzentos... Para muitos, o sonho acabou...
   Outros, persistem guerreiros, ousando sonhar com um mundo de solidariedade e ternura, liberdade e justiça social.
    Hoje, iremos conversar com Fábio Martins: um guerreiro audaz... Um homem de utopias, e de caminhada: vôos de criatividade e batalhas insurgentes pelo novo, pela vida...
     Advogado, militante político, é Doutor Honoris Causa pela Univerdade Popular Madres de Plaza de Mayo, e coordenador de grupos de Teatro do Oprimido.
     Escutemo-lo...
1 Fábio, o conheci em Las Madres e sempre o reencontro ali. Qual é , para você, as lições que elas passam e que marcou a sua caminhada?
1- A realidade política da Argentina guarda uma singularidade própria se confrontada com o Brasil, principalmente ao considerarmos os períodos autoritários dos anos 70-80, em tempos de trevas as Madres de la Plaza de Mayo mostraram que a morte e a violência não podem matar TUDO e que o amor pode se manifestar das formas mais surpreendentes sendo capaz de enfrentar o ódio, o medo e a opressão sempre.

As Madres como referência política são o exemplo que revela a potência do amor levado ao extremo. Fazendo emergir a esperança em meio ao desespero, esperança tão rara em tempos como os atuais, excessivamente confusos, como no passado ditatorial. As Madres são um dos movimentos sociais mais importantes que a America Latina já produziu, é a contra-face amorosa do terror, mostrando ser capaz de lutar pela vida em qualquer circunstancia até nas inimagináveis



2. O Teatro do Oprimido.é um instrumento muito potente, embora não seja ele canonizado pela academia. Onde mora a riqueza do To? o que ele desnuda e bifurca que muitos preferem não ver?
2- O Teatro do Oprimido nos últimos anos vem passando por um processo de ampliação que acabou inclusive levando a uma aproximação da academia, o que não é ruim em si, vai depender do uso que se faz do Teatro como dispositivo. Em sua força bruta o Teatro do Oprimido pode ser considerado como parte de um grande movimento sócio-político que o Brasil e a América Latina passava nos anos 60-70 e que foi combatido pelas hegemonias do poder. No período de abertura democrática o TO foi se consolidando como alternativa frente ao posto no campo da arte popular contestatória, para o TO já não bastava falar de participação, era fundamental exercitá-la mesmo que microscopicamente.

A potência viva do TO esta na disposição de procurar resgatar a condição humana de sujeito ativo, aquela dimensão produtiva-potente-criadora-inventiva que todos os humanos carregam, aquilo que Paulo Freire chamou da "capacidade de ser mais".

3. Qual a sintonia fina entre To e esquizoanálise, que pra mim, sempre se revelaram confluentes de um mesmo sonho?
3- Considero fundamental entender o TO como parte de um movimento maior que abarca vários campos de ação e conhecimento, quando articulado por exemplo com a Pedagogia Freireana o TO toma outra dimensão mais abrangente, é neste sentido que ele pode ser, inclusive, comparado ao movimento esquizoanalítico. Dentro dos movimentos contestatórios o TO emerge junto a outras manifestações, como arte insurgente. No campo "Psi" a Esquizoanálise emerge como manifestação insurgente também... são partes do mesmo sonho... Ambas articuladas por muitos lados com saberes "eurocêntricos" revisitados desde a perspectiva crítica das vítimas e dos oprimidos Latinoamericanos. Neste sentido é muito interessante anotar que as ultimas pesquisas que Augusto Boal realizava era denominada de "A invasão dos Cérebros" (seria o cérebro deleuzeano?) versão iniciada com o Arco-Íris do Desejo a vertente do Teatro do Oprimido que dialoga com a Psicanálise. Para quem não conhece e deseja, o Teatro do Oprimido é mágico, assim como para quem não conhece a Esquizoanálise ela pode se revelar mágica, mas, desde uma convergência comparativa eu seria capaz de dizer que diante da Esquizoanálise o Teatro do Oprimido é um pouco ortodoxo, principalmente em termos metodológicos; a Multiplicação Dramática é um indício dessa afirmação, podendo talvez ser visto como um "entre"... Todavia se é no método que o TO avança e se garante, ali também. estarão suas maiores debilidades... o tema é complexo. O maior impasse é ver um e outro como produto acabado ou como domínio de especialistas.


4.Na sua opinião, qual é a razão da fertilidade, inegável do TO, no trabalho com os portadores de sofrimento mental?
4- A maior força do TO esta na plena confiança que deposita nos "espectadores" sujeitos privilegiados do processo. Confiar na capacidade do outro de fazer e agir é a base fundante do Teatro do Oprimido, este busca resgatar a vocação humana de ser e fazer mais...

Se tem algo que pode "fazer e ser mais" esses são os seres humanos - cada um e todos, uns com mais talento, outros com mais desenvoltura, facilidade ou beleza, mas todos são CAPAZES.
O Teatro do Oprimido neste sentido tem muita clareza e nenhuma dúvida - HÁ QUE SE CONFIAR NO HUMANO. Os portadores de sofrimento mental, sofrem mais pela falta de confiança em si mesmos do que por qualquer outra coisa. Ao olhar para a potencia viva que há em cada ser, o Teatro do Oprimido oportuniza a ação criadora, principal característica do humano como animal vivo, quando isso ocorre a magia da vida pode se revelar nos acontecimentos do instante (o intempestivo) - o espaço-tempo da invenção do novo absoluto. Criar é uma condição de vida... seja onde for e com quem quer que seja.

5.Como militante que caminha, sonhando e sonha, lutando, e vê o mundo sob a perspectiva dos sonhos de libertação, a mulher e sua realidade mudou com a lei Maria da Penha?
5- Uma lei por melhor que seja pode no máximo revelar uma intenção. Se lei servisse para resolver problemas complexos a Constituição de 1988 já teria resolvido muita coisa, mas...


A Lei Maria da Penha mostra a ponta de um movimento do campo social que por vezes se contenta com a proclamação de garantias, deixando de lado o que mais importa: o processo de luta e não o produto desse movimento. A lei ajudou com toda a certeza, mas, não basta, sabemos.
Os maiores avanços alcançados no âmbito da luta contra a "violência doméstica machista" passam pelo Direito, mas vão além... e estão muito aquém, se quisermos assim entender as coisas. Sempre penso que os brasileiro(as) têm um "inconsciente coletivo legalista", um tipo de predisposição em "querer" acreditar em forças superiores da ordem do Direito, numa confusão entre justiça, direito e lei, coisas que não se pode confundir; como se a melhoria das condições da mulher, por exemplo, pudesse vir apenas ou principalmente pela via legal, não é assim que as coisas funcionam. Se as mulheres vem se transformando como sujeito coletivo, isso se deve principalmente pela ação afirmativa de sua condição de ser humano que merece respeito e consideração.

6. Finalemente, amigo, o sonho persiste... O outro mundo necessário... é possível?
6- Possível e necessário tanto quanto respirar... o Mundo se faz fazendo, vivendo, amando, lutando, acreditando e principalmente continuando... Um Mundo Novo não se institui por decreto... não é fácil nem rápido, mas é possível. A esperança ativa é a condição dessa construção HÁ QUE SE ACREDITAR... Somos todos parte desse novo por vir, pois, "somos o que fazemos, mas somos principalmente aquilo que fazemos para mudar o que somos" diria Eduardo Galeano... Mudemos o Mundo para sermos mais.


Agradecemos ao Fábio a gentileza, a lealdade à ideais que nos fazem mais vivos. E, principalmente, seu coração de homem novo:  à la Che...
Para ele, de coração, ofertamos este verso de Fernando Pessoa, acreditando que traduz o muito que ele nos legou com suas reflexões...
" Nunca a alheia vontade, inda que grata,

Cumpras por própria. Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Niguém te dá quem és. Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto. Sê teu filho."

AVISAMOS AO S AMIG@S DO BLOG QUE AINDA NESTE SEMESTRE FÁBIO MARTINS ESTARÁ CONOSCO COORDENANDO UM CURSO "  OFICINAS DO TEATRO DO OPRIMIDO".


lX CONGRESO INTERNACIONAL DE SALUD MENTAL Y DERECHOS HUMANOS
CLÍNICAS: LÓGICAS COLECTIVAS, DEVENIRES, RESISTENCIAS
18 A 21 DE NOVEMBRO. BUENOS AIRES, ARGENTINA...