sábado, 21 de maio de 2011

BONS ENCONTROS: GUATTARI, O DISRUPTIVO MILITANTE DA INOVAÇÃO PERMANENTE

grandes momentos da filosofia (guattari)

“Um texto de Deleuze sobre Guattari fala em dois Guattaris, um Pierre e outro Félix (ele chamava-se Pierre-Félix Guattari). Segundo as palavras de Deleuze, um era ‘como uma cabeça catatônica, corpo cego e endurecido que se impregna de morte quando tira os óculos’; o outro, ‘um brilho deslumbrante, cheio de múltiplias vidas, assim que opera, ri, pensa ataca’. São as duas potências esquizofrênicas de um anti-Eu. A petrificação e o brilho.
Talvez eu não devesse terminar com uma anedota pessoal. Mas a gente acaba fazendo muitas coisas que não deve, ao longo de uma vida, sobretudo quando se defronta com uma morte extemporânea. Segue então esse breve relato. Em 1990 eu estava de visita à França e fui com Guattari conhecer a Clínica de La Borde. Saímos de Paris de carro. Ele pediu que eu guiasse, enquanto dormia, assim, sem óculos, petrificado, conforme a descrição de Deleuze. Mas muita gente no sono vira pedra. Entretanto, no dia seguinte, ele não estava diferente, mesmo acordado, mesmo comendo sobre a mesa longuíssima e monacal de sua casa em La Borde, mesmo estatelado sobre um sofá diante da televisão, mesmo oferecendo uma cadeira a seu vizinho e amigo Jean Oury. Petrificado. Eu jamais o havia visto assim, nas diversas viagens em que o acompanhei no Brasil. Já um pouco aflito com a situação, resolvi sair com minha companheira para um passeio. Guattari quis vir conosco. Andamos em silêncio, fim de tarde, ouviam-se os passos, rumores longíquos, a noite chegando, um vizinho cumprimentando, tudo bucólico até que topamos com um chiqueiro. Ali ficamos, com os porcos; primeiro em silêncio, depois comecei com eles uma conversa, no pouco que sei grunhir. O diálogo, recíproco, foi se intensificando. Por fim Guattari entrou na conversa, rindo muito, grunhindo também. Acho que nessa estada de um dia e meio em La Borde foi a única conversa que tivemos, grunhida, no chiqueiro, com um coletivo de porcos, num verdadeiro devir-animal. No dia seguinte, fui embora, intrigado. Eu me dizia que um pensador tem o direito de ficar catatônico, de virar morto, de grunhir de vez em quando, se é isso que lhe dá na telha. Na verdade, desde então sempre invejei aquele estado catatônico e às vezes, à minha revelia, me vejo assim para infortúnio dos que me cercam. Na época lembro de ter tido a fantasia de que quando Guattari morresse, eu escreveria um texto chamado “Um Direito ao Silêncio”. Pena que esse momento tenha chegado tão logo e que esse silêncio, hoje, seja irreversível.
“Mas relendo recentemente alguns textos seus, entendi que aquele silêncio de La Borde não era só petrificação, mas também imersão numa espécie de caosmose, esse misto de caos e complexidade, de dissolução onde se engendra o que está por vir. Talvez o silêncio que Guattari deixa com sua morte também devesse ser tomado como uma espécie de báscula caósmica. Quiçá pudéssemos, a partir dele, deste silêncio, desta morte, desta báscula caósmica em que ficamos com o choque surdo de sua morte, fazer isto que ele propugnou e realizou tantas vezes, e que ele chamou do jeito mais bonito, de a potência do eterno retorno do estado nascente.”
(PELBART, Peter Pál. “Um Direito ao Silêncio – Homenagem a Félix Guattari”. In A Nau do Tempo-Rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. RJ: Imago, 1993. p.126s.)

2 comentários:

Tânia Marques disse...

Uma luz brilhante, no fundo desse túnel sem fim.Beijossssssss

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Tânia, há na internet para baixar, agora, estou sen o link, um livro" Biografias Cruzadas" ... a vida e produção conjunto do rizoma Guattari e Deuze: luz, luminosidades insurgentes.
Abraços e beijos; Jorge