sábado, 28 de maio de 2011

DIÁRIO DE BORDO: O HOMEM DE PAIXÃO E A COM-PAIXÃO DO HOMEM...

                                                                    Jorge Bichuetti

O silêncio reina... Todos dormem. Não escuto os sonhos que pairam no ar; mas os pressinto. O dia-a-dia nos dá intimidade com pessoas, bichos, plantas e coisas... A roseira perfuma sonolenta; os álamos pensam na relva como um leito macio... e a Luinha arquiteta a próxima travessura...
Dentro de casa, longe do quintal há mais ruídos... Livros e discos: cantam e contam uma multidão de histórias: aventuras, sonhos, amores felizes e infelizes, lágrimas e festas, paixões...
O ser humano conversa uma volumosa dose de idolatria pela paixão... chegamos a medir a qualidade das nossas vidas pelo desenrolar das nossas paixões..
Adrenalina? ou um gostar de estar no trapézio sem rede de proteção?...
A paixão, costumeiramente, colore o dia... Dá vida onde só há uma frugal ocorrência , uma banalidade... Tudo se encanta... Dá sentido. Um sentido perigoso , pois nos torna completamente vulnerável ao desejo do outro.
O desejo flui, inventa-se, produz... a paixão escraviza, focaliza e coisifica o desejo: ele passa a ser a razão, o sentido de uma vida.
Ficamos totalmente dependentes...
A paixão sensual não é a única; porém, ela é monarquista, gosta de reinar e nos leva a crer que tudo o que gostamos é secundário.
Como comparar a maciez das pétalas das rosas com o acetinado do corpo amado?... como relacionar o valor das declarações de almanaque com um poema de Fernando Pessoa ou uma Cantata de Bach?... Ela, a paixão, é uma emoção imperialista e colonialista, absolutista.
Romanticamente, cremos que o vadio sexo é tem seu apogeu na paixão...
A paixão é, indubitavelmente, um alucinógeno...
Um maravilhoso alucinógeno.
Seu crime é impor-se excludente, esvaziando a vida, restringindo os prazeres e nos reduzindo a um homem de paixão; com a anulação dos nossos muitos outros quereres...
E o seu grande erro estratégico é pretender ser a fonte única de vida duma vida.
A falência é esperável e inevitável...
Ninguém supre a complexa multiplicidade do outro; ninguém mantém-se alheio, por toda uma vida, as inúmeras pulsões desejantes que nos vitalizam...
Outras paixões: música, poesia, futebol, camaradagem.. vadiagem...
Ainda pesa sobre a paixão, que pela própria contradição com a vida, que é fascinante e diversificada, a paixão é insegura: não se compraz no amar, exige o ser amado; não alegra no dar-se, necessita compulsivamente de receber...
Não precisamos temê-la e fugir... Mas não seremos felizes restrito à condição de homem de paixão; um novo horizonte urge no cenário da existência...
Podemos mais sendo homens de com-paixão; de muitas paixões que nos levam a ser solidariedade, ternura, generosidade, amar sem limite e sem expectativa escravizante...
A com-paixão nos coloca com o outro, com a humanidade e nos forja ações de produção afirmativas da vida.
Paixão e compaixão combinam quebrando os elos da servidão.
A compaixão humaniza, enriquece, amplia... dá densidade existencial.
A paixão restritiva e segregatória desumaniza, brutaliza e restringe nosso universo existencial...
Enigmas do amor, travessuras da paixão...Voos da compaixão...
Lembrando Mario Quintana, ousamos dizer que a compaixão ´e as flores cultivadas no jardim da vida que atraem as borboletas... E as borboletas colorem e enfeitam a vida.

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