terça-feira, 16 de agosto de 2011

BONS ENCONTROS: POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS; HUMANIZAR A VIDA É CRIAR UM MUNDO DE TERNURA E PAZ

O evento Encontros de Ética, na sua próxima edição, terá como tema A ética no Movimento Social da Luta Antimanicomial. Maria de Fátima Bueno Fischer, professora no curso de Psicologia da Unisinos, estará no próximo dia 12 de setembro, das 17h30min às 19h, na sala 1G119 do IHU, conduzindo a discussão. A entrevista que segue adianta aos leitores o tema do evento, e foi concedida por e-mail, na última semana. Graduada em Psicologia, pela PUCRS, Maria de Fátima é especialista em Saúde Pública e em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública, de Porto alegre. Atualmente, curso o mestrado em Educação na UFRGS.

IHU On-Line - Quais os principais objetivos e as principais conquistas do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial?
Maria de Fátima – O Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental surgiu em 1986, como outros movimentos sociais e populares, com o processo de democratização do País. O fim da ditadura, as crises da previdência social e da saúde, do modelo econômico, os movimentos de luta pela democracia, a falência do modelo hospitalocêntrico e os movimentos sociais pela saúde são fatores que amadureceram a emergência da luta antimanicomial. Inicialmente, seus objetivos eram de denúncia às condições desumanas às quais eram submetidos os portadores de sofrimento psíquico, de tortura e maus-tratos praticados nos manicômios brasileiros e de reivindicação de aumento de trabalhadores e melhores condições de trabalho no setor. Sindicatos das áreas de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos criaram, em São Paulo, o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) que, em 1987, no seu segundo encontro nacional, fundou o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial - Por uma Sociedade sem Manicômios, já com a participação de usuários e familiares. Este movimento tem suas raízes históricas na Rede Alternativa em Psiquiatria, e teve importante influência de Franco Basaglia[1], Michel Foucault[2] e Robert Castel[3] que, na década de 1980, vieram ao Brasil e participaram de encontros, congressos, trazendo a experiência européia de desinstitucionalização psiquiátrica. Os objetivos do movimento vão se complexificando, na medida em que se institui como uma questão social. Da denúncia, à problematização dos direitos humanos, o movimento vai ampliando suas bandeiras de luta: buscando e conquistando direito à assistência, à moradia, a cuidados intensivos, à geração de emprego e renda, e à participação e controle no sistema de saúde e de saúde mental, com representantes nos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde. A luta antimanicomial, enquanto movimento social, provocou desde meados da década de 1970 até o momento atual, diversas iniciativas políticas, culturais, sociais e jurídicas que mudam a relação da sociedade com o portador de sofrimento psíquico.

IHU On-Line - Quais são as principais discussões em relação à ética e os manicômios?
Maria de Fátima – As questões centrais relacionadas à ética e ao manicômio estão exatamente na natureza desta instituição, na sua existência. Uma instituição que é capaz de expropriar a subjetividade do outro se funda em seu fracasso! O manicômio surge como aparato de tratamento psiquiátrico legítimo para a organização social na era moderna. A loucura, antes tratada moral e eticamente, passa a ocupar centralmente um papel utilitarista econômico. Surge como instituição disciplinadora e coercitiva. Servia como instrumento que a sociedade se valia para manter a ordem social. Naquele período, o manicômio servia para isolar todos os “desajustados”: loucos, vagabundos, libertinos, homossexuais, prostitutas, todos que perturbavam a ordem social, e não serviam para a produção. Dois autores tratam bem esta questão: Michael Foucault (1997), ao estudar e analisar o surgimento do hospício e a psiquiatria moderna e Erving Goffman[4] (1996), ao nomear o manicômio como uma instituição total. Trata-se, então, de uma realidade que, na década de 1980, mostra a falência ética do manicômio. O abandono do psicótico e seus familiares, as longas internações, os maus-tratos, a ineficácia dos tratamentos psiquiátricos não conferia aos manicômios um lugar terapêutico. Esta dura realidade tornara-se ainda mais grave pela crise do modelo econômico brasileiro, que ia desta forma “produzindo” uma alta taxa de ocupação de leitos nos hospitais psiquiátricos de sujeitos solitários, desempregados, alcoolistas, migrantes desadaptados à cidade. O movimento da luta antimanicomial, como voz denunciante desta realidade, é o precursor, principal ator social da reforma psiquiátrica, que emerge então numa outra ética: a da solidariedade. A ética da resistência democrática, como diz Betinho, a que se baseia nos princípios de liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade. Uma ética que subordine o privado ao público, em que o interesse comum da maioria se afirme, respeitando a minoria, no respeito à diversidade e à liberdade como condições de exercício da cidadania.

IHU On-Line - Por que os manicômios e hospitais psiquiátricos convencionais são combatidos com tanta veemência por esse movimento? Como os direitos humanos contemplam os pacientes com distúrbios mentais?
Maria de Fátima – Quando o movimento inicia, ele faz justamente a denúncia da falta de garantia dos direitos humanos dos portadores de sofrimento psíquico nas instituições manicomiais brasileiras. Atendendo a um apelo, familiares, trabalhadores de saúde mental e entidades de direitos humanos juntam-se ao movimento, dando início a campanhas e denúncias que passam a ser veiculadas na grande imprensa. Situações de descaso, maus-tratos, mortes, eletrochoques e abandono são corriqueiras nos manicômios da época. Em todo o País, começa a ser revelada uma realidade gravíssima sem a mínima garantia dos direitos humanos. Hoje, apesar de todos os avanços do movimento, da reforma psiquiátrica, e de medidas governamentais reguladoras no Brasil, das 234 instituições psiquiátricas existentes, apenas 26 apresentam condições razoáveis de atendimento, conforme relatório de vistoria realizado em 2003/2004 pelo Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos. A busca da afirmação de seus direitos continua como bandeira do movimento.

IHU On-Line - É possível um tratamento psiquiátrico em casos de loucura sem excluir o indivíduo da sociedade, do convívio familiar, do exercício de direito de sua cidadania? Que experiências há nesse sentido?
Maria de Fátima – Esta é uma grande questão de princípio para o movimento. Garantir o cuidado sem, de forma alguma, reproduzir qualquer forma de exclusão. É possível, sim! A superação dos manicômios e a criação de serviços substitutivos capazes de dar conta do cuidado integral, desde a manifestação da crise, até o retorno do sujeito à sua vida familiar, comunitária, no trabalho são os objetivos da reforma psiquiátrica. No Brasil, quando do início da reforma psiquiátrica tínhamos 70 mil leitos no Brasil, hoje 41 mil. O investimento modificou para 60% em leitos psiquiátricos e 40% em outros equipamentos não-hospitalares. Hoje temos, distribuídos pelo País, uma rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), lares abrigados, pensões protegidas, oficinas de geração de renda, atendimento a crianças, adolescentes, usuários de drogas, leitos em hospitais gerais, entre outros. Trabalha-se com a garantia do atendimento intensivo, com a família, comunidade e a rede de apoio capaz de produzir a possibilidade do usuário de retomar sua vida, apesar da doença, e não o que ocorre nos manicômios, onde ele fica reduzido à doença, sem direito ao exercício de sua vida. Só o Rio Grande do Sul tem hoje 70 CAPS, residenciais terapêuticos, oficinas de geração de renda e programa de reabilitação para o trabalho, que vêm reduzindo significativamente as internações psiquiátricas.

IHU On-Line - Como está a situação dos manicômios no Brasil e como o governo brasileiro tem se posicionado em relação a essa questão?
Maria de Fátima – O governo brasileiro tem, em seus quadros de dirigentes da política nacional de saúde mental, importantes e históricos representantes do movimento da luta antimanicomial. Alguns deles vêm contribuindo há muitos anos, tendo viabilizado avanços diretamente relacionados às bandeiras do movimento da luta antimanicomial. Desde a regulamentação, por meio de normatizações e de portarias que garantem mudanças nos cuidados, exigem a organização da rede integrada de saúde mental nos municípios e estados brasileiros, até a permanente fiscalização do cumprimento do aparato jurídico-institucional. Recentemente, foi aprovada a participação de usuários de saúde mental no Programa Nacional de Economia Popular e Solidária, e há iniciativa dos Ministérios da Saúde e das Cidades de planejar unidades habitacionais para portadores de sofrimento psíquico. Já implantado o programa De volta Para Casa, e o de formação permanente de recursos humanos para a reforma psiquiátrica.

IHU On-Line - Qual o papel da sociedade civil para a transformação do quadro atual? Quais as respostas que ela tem dado em tempos de falência do modelo manicomial e insuficiência dos atuais serviços?
Maria de Fátima – A questão que se coloca é crítica ainda, tendo em vista a dura realidade brasileira. Como lidar com a inclusão do louco numa sociedade desigual nas oportunidades de educação, trabalho, lazer, cultura? Numa sociedade que mal inclui seus cidadãos? E, para aquele que sofre uma dupla exclusão, onde não consegue disputar com igualdade uma vaga de emprego, porque foi excluído da experiência do trabalho, foi excluído da educação? Foi expropriado subjetivamente? Então, a busca e a esperança por uma sociedade justa e solidária se tornam mais difíceis para a realidade dos hoje portadores de sofrimento psíquico. O que vem sendo colocado para a sociedade é a possibilidade de se relacionar de outra forma com a loucura, com o portador de sofrimento psíquico. Saindo e rompendo com os manicômios, tratamos de uma outra realidade. Emerge a questão da cidadania. A loucura faz parte de todos nós, e sem o manicômio fica mais clara esta questão. A loucura faz parte da condição humana, trata-se, assim, de um aspecto ético, de viver e de conviver com a loucura na cidade, em seus espaços, em seu cotidiano. Pensar e viabilizar quais as exigências, necessidades que se coloca para o portador de sofrimento psíquico na vida? Como assegurar o convívio e a cidadania plena? Esta é a exigência ética que se coloca para todos nós.



 

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